14 de outubro de 2010

Capítulo 06 – Mas o que é o amor?

Todo o romantismo entre mim e a paisagem urbana de uma cidade pequena tinha se desmoronado depois dessas ultimas frases. Os sons se emudeceram. E uma única frase ecoava em minha cabeça por toda a tarde: “Você nunca amou?”. Os instantes seguintes à essa conversa são irrelevantes. Saímos dali e voltamos a nos afundar naquele escritório. Ao voltar, Rômulo colocou o fone de ouvido e não o tirou mais, durante todo o dia. Eu fechei a cortina, coloquei meu blazer, e terminei furiosamente o projeto que estava atrasado, passando os arquivos via rede para Rômulo montar as pranchas. Renan voltou. Tentou chamar nossa atenção sobre alguma coisa que não me lembro mais o que era. Mas ele percebeu o quão sério nós estávamos, e como isso não é muito normal, acho que ele percebeu o peso do ar naquele escritório. Falou o que tinha que falar e foi para sua sala.

Você nunca amou? Perguntava meu subconsciente segundo a segundo. A raiva daquela conversa subia cada vez que pensava numa possível resposta para essa pergunta. Onde eu estava com a cabeça quando falei aquelas coisas pro Rômulo? Nos carros passando na rua? Nos cabelos da Laura? No vapor saindo da xícara de café? Havia perdido meus pensamentos, e não conseguia perceber em que momento foi que isso aconteceu!

Um sentimento de angústia e vergonha começou a tomar conta de mim a partir de então. O projeto fluía. A coragem de encarar o Rômulo nunca vinha. Tinha medo de a raiva me subir a cabeça quando o encarasse. Renan tomou o café das dezesseis horas sozinho. Nem questionou quando nos recusamos a acompanhá-lo até a cozinha. Da minha mesa podia ouvir o ruído da cafeteira (era óbvio que Renan não sabia fazer café, só com uma cafeteira mesmo), o assobio de uma música que nem ele seria capaz de identificar. O apartamento acima do nosso era o único que se mantinha residencial. E, ainda por cima, era uma república. Constantemente tínhamos problemas com eles. Nesse dia não foi nada de grave, mas, depois que o ruído da cafeteira cessou, percebi que alguém tinha esquecido um despertador ligado. Ele começou a tocar aquele “piririri-piririri” irritante e não parava mais. Tinham se passado mais ou menos uma hora e meia de incômodo e aquele despertador agora martelava na minha cabeça. Depois de um dia transtornado como aquele. Comecei a juntar minhas coisas alguns minutos antes do horário de fecharmos. Geralmente ficamos um pouco a mais. Juntei rápido, peguei meu blazer, coloquei o fone de ouvido. E fui na direção da saída. Sem perceber, Rômulo e eu estávamos saindo ao mesmo tempo. Ainda não tínhamos nos encarado desde o final da conversa. Desci de escada, e ele foi na direção do elevador. Ao começar a descer as escadas dei o play no mp3. E aquela mesma música desconhecida voltou a tocar.

Nessa hora a Nice veio na minha cabeça. E então a conversa com Rômulo. E um monte de outras coisas. Ao passo que os andares abaixo pareceram apenas degraus, e eu já estava no térreo do prédio, novamente de frente para o elevador, quando a porta se abriu e dei de cara com Rômulo. Meu olhar tentou desviar do dele, mas então me encarei no espelho que estava atrás dele, e percebi o quão infantil estava sendo. Olhei de novo pra ele e disse a única coisa que consegui concluir depois daquela escada:

_ A verdade é que, se perguntarem o que é o amor pra mim, não sei responder! Não sei explicar!

_ E quem falou que tem explicação? – ele disse com a mesma tranqüilidade que eu ao exclamar tal coisa.

Rômulo não mora muito longe do trabalho. Ele vem a pé. Então, peguei minha bicicleta e o segui, mesmo sem convites, mesmo não sendo caminho para a minha casa. Aquela conversa, aquele desabafo, aquele clima pesado não podia simplesmente ser esquecido com uma boa noite de sono. Ela devia ser bem mastigada e digerida. Foi o que fizemos nessa caminhada até a porta de sua casa.

_ Fiquei o resto do dia procurando lembranças na minha cabeça de momentos em que me senti amado. Poucos flashes da infância me vieram a mente. Alguns fins de semanas que íamos ao parque municipal, ou os passeios pelas largas avenidas, em família. A liberdade do espaço, do desconhecido e a proteção do abraço, do familiar. – o sol se punha por trás dos morros que escondiam o horizonte, a luz dos postes já se acendiam, e um vento frio soprava. A caminhada era curta, precisava falar tudo de uma vez.

_ Zé, não creio que estávamos falando de amor paterno àquela hora!

_ Sim, eu sei. Mas, essa foi a única definição de amor que eu encontrei em mim. Se é que, como criança, não tenha fantasiado esses momentos em realidades que não condizem com o sentimento dos meus pais nesses passeios.

_ Você está sendo muito cruel consigo mesmo. Não olhe a vida por esse ângulo! – talvez Rômulo tivesse razão ao dizer isso, nossas opiniões e certezas não passam de uma situação vista a partir de um ponto de vista.

_ Tá, pode ser. Mas então, me mostre a partir do seu ponto de vista provas de que eu fui amado um dia! Você conheceu meus pais, conhece o que precisa ser conhecido da minha vida. Me diga, existe alguma evidência de amor em mim?

_ Zé, chega disso, não nos compete julgar o que é amor!

_ Mas você não ama sua mulher?

_ Não é simples explicar. O amor é uma mágica. Só sei que o amor cresceu dentro de mim. Me fez renascer. Não que ele tenha surgido do nada. Foi algo plantado. A mágica não acontece sozinha. Ela tem que ser feita. – anos depois fui entender a profundidade das verdades embutidas nesse pensamento de Rômulo.

_ Então me diga onde está a simplicidade disso tudo, não foi você quem disse que não tem como ser complicado? – pelo menos foi a ultima coisa que lembrava da conversa daquela tarde.

_ Alguns dizem que o amor é um jogo. Eu prefiro encarar como uma escolha.

_ Sim, escolher a pessoa certa. Escolher um amor pra toda vida! Isso talvez seja uma baboseira nesse mundo moderno em que vivemos. – a essa altura da conversa já estávamos na calçada da casa dele.

_ Não é disso que estou falando. O amor é uma escolha integral. Não se escolhe a quem se ama. O amor acontece. Mas você tem que optar por amar, seja quem for. Amar primeiro a você mesmo. Quem você é e foi. Pra depois permitir que o amor alcance outros.

Diante dessa exposição não tive mais cabeça pra retrucar ou responder. Fiquei apenas parado.

_ Entra pra uma cerveja? – disse sorrindo como se estivesse pedindo desculpas.

_ Está esfriando hoje! Vou pra casa. Preciso descansar um pouco!

Ele se aproximou e me deu um abraço. A muito tempo não recebia uma abraço sincero. Apenas formais comprimentos.

_ Não encha sua cabeça com falsas e mirabolantes teorias sobre o amor ou sobre relacionamentos. Apenas aceite-o e deixa a vida rolar!

O resto do caminho (ou, na verdade, todo o caminho, já que tinha me desviado do caminho mias curto para casa) o vento frio não era percebido pela minha pele. Todas aquelas situações de hoje me deixaram, talvez, mais insensível e curioso por entender o que se passava na minha mente sobre toda minha trajetória até o presente sentimento de medo que me dominava.

25 de setembro de 2010

CAPÍTULO 05 - COMEÇA O DRAMA

_Claro, sem dúvidas!
_ Mandaremos o contrato para assinarem até o fim de semana.
_Esperaremos Marcos.
_Tenha um bom dia. – disse Renan depois de quarenta minutos de reunião com o representante da Construminas.
_Um bom dia pra vocês também. – retornou Marcos.
Renan abriu a porta:
_Eu o acompanho até o estacionamento, tenho um compromisso às oito.
_ Ah!Claro. – entraram no elevador. O olhar de Renan pra mim enquanto a porta se fechava fez com que meu sorriso de “simpático”com o representante se quebrasse. A ponto de ele perceber e torcer uma das sobrancelhas como se perguntasse: o que foi isso?
Fiquei alguns segundos parados na porta olhando para o corredor. As vezes meu olhar se congela em pontos fixos, pontos sem sentido, como o botão do elevador enquanto minha mente trabalha furiosamente consumindo meu cérebro, até que me lembro que ainda estou vivo e volto a me movimentar. Já são quase oito horas. Estou acordado a apenas três horas e meia. A corrida de meia hora, a conversa com uma adolescente, os devaneios no transito, a discussão no trabalho, a reunião de negócios, o que mais podia esperar das outras onze horas do meu dia? (É que eu durmo cedo!)
_Até que foi rápido! – exclamou Rômulo.
_A negociação estava pronta, fomos só reavaliar algumas cláusulas do contrato, estamos procurando o melhor modo de não ficarmos dependentes dessa construtora. Vai ser uma ótima parceria, mas creio que não permanente. Hora de um café?
_Seria ótimo. Você faz hoje?
_A não! Vamos na padaria da esquina, eu pago!
_Renan foi aonde?
_Ele tinha uma reunião de pais e mestres! Uma apresentação da filha na escola, sei lá!
Ele olhou pra mim como se eu não tivesse dito nada.
_Vai demorar uns noventa minutos!
_Beleza!
Rômulo levantou no impulso, puxando as caixas de som com o fone que nunca tira dos ouvidos. Esbarrou na cadeira, tirou os fones, desligou a tela co computador. Eu já estava do lado de fora, esperando o elevador.

_Bom dia Marta!
_Bom dia Dr. Félix!
_Só Félix Marta, já disse!
_Tá bom, “Félix”.
_Eu quero um café e um pão de queijo.
_Eu, hum... o mesmo. Não, dois pães de queijo. – disse Rômulo.
_Levo rapidinho pra vocês!
_Obrigado Marta.
_Zé! – Rômulo as vezes me chama assim – Me fala sobre a Nice! De onde você inventou ela?
_Inventei! Eu não inventei nada.
_Pode dizer cara! Se você gosta de... Como se chama aquela banda?
_Eu não sei, eu não conheço aquela música! Sei que já ouvi em algum lugar, mas não sei quem toca! – essa história já estava me irritando.
_Beleza. Beleza. – disse se virando do balcão.
Sentamos numa mesa perto da porta. Virei-me para a rua, com o objetivo de ver as pessoas, os carros. O movimento da rua, das pessoas me tranqüiliza. Saber que não estamos sozinhos no mundo. Ver as caras de alegria, angústia, sofrimento e medo das outras pessoas nos lembra o quão normal nós somos. Os sons do dia a dia. Estamos sempre cercados de pessoas. Mas esse som, que parecia música pra mim, parecia não satisfazer Rômulo. Ele queria conversar.
_ O Renan me disse que temos uma proposta da “Patriarca” para uma reforma de visão e estrutura nas lojas da ...
_ Rômulo! Rômulo! Deixa pra gente conversar de trabalho outra hora, lá no escritório de preferência. Não precisamos viver nosso trabalho. Dá pra você esquecer o Renan por um instante e apreciar o café. Veja o dia-a-dia dos outros, curta a vista do trânsito pacato de cidade pequena, veja as pessoas.
_ Por falar em pessoas olha aquela mulher saindo do açougue!
Hesitei inicialmente. Tudo que eu não precisava agora era arrumar uma mulher pra atrapalhar minha tranqüilidade. Estou vivendo um momento meu. Prefiro continuar sem pressões. Menos um compromisso. Mas ao olhar para a cara do Rômulo, a curiosidade humana falou mais alto, ele tinha um sorriso babão estampado. Me virei rapidamente e vi um cabelo ruivo esvoaçante refletindo o dourado do sol. Esse cabelo emoldurava uma pele clara, um nariz com sardas, um decote comportado mas chamativo, apesar dos seios não parecerem lá grandes coisas e um olho que, na verdade, não se podia ver, pois estavam protegidos por um enorme óculos escuros. Realmente uma imagem digna de ser vista. Foi então que a trave do encanto caiu dos meus olhos.
_ Ah! É a Laura.
_ Você conhece?
_ Eu a conheci no lançamento de um livro de artes. Ele é a dona do “Relicário”, aquela loja de móveis rústicos e antiguidades. Até comprei algumas coisas lá pra minha casa. Conversamos de vez em quando.
_ Zé, você me surpreende a cada dia. Faz pose de santinho, que nunca sai do seu canto, mas parece que esse santo do pau oco esteve saindo do seu relicário. - O sorriso babão tinha se transformado numa cara de inveja.
_ Como assim?
_ Aposto que você aproveita bem seu fim de semana. Solteiro, essa cara de novo e uma grana no bolso, deve ficar com uma mulher diferente por semana. Ou mais! Até adolescente, essa tal Nice. É subiu no meu conceito!
Tudo não passou de baboseira pros meus ouvidos, meus olhos continuavam a observar a rua. Não mais a Laura, ela já tinha saído do meu campo de visão. Mas a distração me fez falar uma daquelas verdades que os homens costumam omitir para não assustar os colegas.
_ Eu nunca saí com ninguém.
Depois de uns cinco segundos de silêncio Rômulo voltou a falar. Na verdade ele tinha se engasgado com o café na hora que eu falei isso.
_ Você nunca...!
_ O que? Perdi o fio da meada. Sobre o que estamos falando.
_ Você acabou de dizer que nunca saiu com ninguém! – ele disse mais alto do que precisava.
_ Eu disse isso! Não precisa falar tão alto. Calma. Eu nunca saí com ninguém, e daí?
_ Como “e daí?” cara! Você tem o que, uns trinta anos e nunca namorou ou saiu ou transou ou amou ninguém!
_ Não foi isso que eu disse! Eu disse que...
_ Você disse que nunca saiu com ninguém! Eu ouvi bem. Não, espere aí, essa é mais uma mentira. Nice, Laura e agora isso, aposto que é tudo mentira, você ta inventando tudo, nunca conheceu uma Nice ou Laura e já pegou um monte de mulher!
_ Me diga por que eu inventaria uma coisa dessas? Se fosse pra mentir eu mentiria justamente o contrário! Diria que tenho um monte de mulheres atrás de mim e que sou o maior galinha.
_ Faz sentido!
_ Eu não tenho o que esconder de vocês não! São meus únicos amigos. Aliás, não sei se o Renan é meu amigo.
Nesse instante ouvimos uma batidinha no vidro da janela e olhamos assustados . E mais assustados ficamos quando Laura, parada em frente a janela, tirou os óculos, mostrando seus olhos castanhos claro e acenando pra mim. Deu um sorriso e um sinal de que me ligaria.
_ Tá, parece que é verdade mesmo. Mas Você nunca namorou?
_ Não.
_ Nunca saiu com ninguém?
_ Não é bem “nunca”! Já tentei, mas não deu certo.
_ Mas pelo menos levava elas pra sua casa, rolava uns amassos...
_ Não! Já disse! – porque quando um homem encontra alguém que eles consideram diferentes dos homens que eles consideram normal precisam especular tanto. Pior que mulher fofoqueira!
_ Por que isso? Você nunca amou? Seu coração é tão frio assim?
_ Rômulo, é muito mais complicado do que você imagina.
_ O que pode ser complicado no amor? O amor acontece! Acontece com todo mundo, em todas as idades!

27 de julho de 2010

Início do fim

Tudo tem um começo. O meu foi mais ou menos assim:

Filho único de família de renda média alta, cheguei ao meio familiar cercado de expectativa. Tudo eu. Tudo meu. Mimado? Não. Meus pais tiveram sabedoria suficiente para eu crescesse em humildade e conhecimento. Belo Horizonte, com seus parques e praças, foi cenário de inúmeros passeios e brincadeiras. Fazer xixi nas árvores, tropeçar no calçamento português, comer doces na feira aos domingos. Cenas de um filme só meu que guardo na memória. Pelo menos guardei só pra mim, até hoje.
A infância permite uma felicidade jamais imaginada. Nada de preocupações. Apenas o ceio familiar. Pais heróis que nos protegem nos momentos de fraqueza e nos abraça nos momentos de tristeza. Heróis que se tornaram os vilões da adolescência e reflexo da complexidade sentimental que sou hoje. Sempre fui muito parecido com meu pai. Ele era daquele tipo galante dos anos 70. Uma voz firme e segura. Uma barba nem densa nem rala. Um olhar com algumas olheiras que o deixavam naturalmente sério. Mas com um sorriso que o deixava naturalmente encantador. Contam-me que durante sua passagem pela escola era o conquistador. Tocava guitarra. Era o sonho das meninas. O chamavam de Elvis. Por conta disso, na vizinhança onde cresci, me chamavam Elvinho. Até minha mãe às vezes me chamava de Elvinho.
Nunca gostei das comparações. Queria ser eu. Acho que por isso criei meu modo meio alternativo de vestir, de ser. Mas a genética é traiçoeira. O nariz era dele, o sorriso era dele. Até as olheiras eram dele.
Lembro-me que quando fiz 10 anos, ele me contou que foi com essa idade que ele se apaixonou pela primeira vez. Foi seu primeiro beijo. O beijo perfeito. Contou da fila de meninas que andavam atrás dele depois disso. O primeiro da sua turma a dar um beijo na boca. Ele se gabava até então da fama que possuía. Disse que isso também aconteceria comigo. Mas nunca quis ser ele. Nunca quis seguir a mesma trilha.
Logo veio a primeira paixão. E fugi dela.
Fugi de muitas coisas durante minha vida. Motivos de arrependimentos.
Minha mãe é que se gaba de não ter dado bola para o garanhão da escola e ter sido a única que ele realmente quis. Aí sim teve que exercitar tudo o que aprenderam com os tantos relacionamentos superficiais para realmente conquistar minha mãe. E deu certo.
Meu pai morreu de câncer.
Prefiro ser direto. Enrolar com assuntos como esses me dão desespero. Eu tinha 12 anos quando ele descobriu a doença. E tive que enfrentar a barra sozinho. Minha mãe esqueceu que tinha vida própria. Esqueceu que tinha um filho. Os primeiros meses foram de desespero. A busca por repostas. Perguntas sobre o desconhecido. Discussões freqüentes, apesar do amor. Estavam desconcertados com as freqüentes notícias ruins que apareciam. Uma noite, levantei para ir ao banheiro, como fazia toda noite, e os ouvi na cozinha, conversando:
_ Nossa poupança não será suficiente.
_ Mas não podemos esperar que essa situação piore. – disse minha mãe quase aos gritos.
_ Mas e o José?
_ Nossa prioridade é sua saúde agora. Ele tem que entender. Ele precisa perceber que não somos mais uma família normal.
_ Mas ele precisa ser um garoto normal.
Nessa hora eu já tinha descido as escadas e estava encostado na parede perto da porta ouvindo melhor a conversa.
_ Como ele vai ser um garoto normal se não tiver um pai? Ele precisa de você!
_ Ele precisa ter vida! – meu pai, mesmo desesperado queria me proteger.
Subi assustado com a possibilidade de crescer sem pai. A idéia do super-herói abatido e desesperado pelo desconhecido desestrutura toda uma base familiar. Toda a imagem da família feliz começou a desmoronar.
Ele precisa ter vida. Isso ficou na minha cabeça. Nunca quis ter a vida dele. Sempre quis ter minha vida. E às vezes o achava meio decepcionado por me ver querendo ser alguém diferente. Por nunca ter aprendido a tocar guitarra. Por nunca ter falado de garotas com ele. Isso me deu coragem pra continuar minha rebeldia, apesar de sua doença.
Nos dois primeiros anos fizeram-se de fortes. Meu pai continuava a ir pro trabalho, minha mãe continuava em casa, mas agora sempre lendo livros médicos, assistindo programas sobre saúde. As coisas não se mantiveram as mesmas, acabaram-se os passeios nos fins de semana, mudamos nossos hábitos alimentares, nos afastamos. O medo foi priorizado. A família esquecida em função do indivíduo. Eu não me esqueci de mim. Eu preferi esquecer que existia uma doença. Que existia um problema. Queria ser criança, apesar da idade já avançando.
Depois desse período a situação foi agravando. Meu pai começou a fazer tratamentos mais intensos. Coquetéis de remédios que só o deixavam aparentemente mais dispostos, mas que, acredito eu, só o ajudava a se fazer parecer mais forte. Ele começou a perceber que seu tempo conosco seria curto. E voltamos a fazer coisas que já não fazíamos mais juntos. Os passeios pelas praças, os almoços de domingo. Ilusões que acalmaram minha mãe, alegraram o meu pai, mas não fizeram sentido para mim. Em que toda essa farsa de família normal, essa rebusca pelo papel do pai herói (e da mãe fortaleza) ajudariam na situação familiar em que nos encontrávamos, como isso me ajudaria a viver minha vida, a ter uma vida. Esse teatro só me trazia mais preocupações de quando é que a bomba estouraria. E isso não demorou a acontecer.
Quatro anos depois, os tratamentos tornaram-se demasiadamente caros para a situação financeira do meu pai. Cada vez mais fraco, teve que deixar o trabalho. E o dinheiro da poupança já tinha acabado. O sonho tinha acabado. A estabilidade tinha acabado. Meu modo de viver a situação só deixava minha mãe mais transtornada. Não podia me ver que começavam as reclamações:
_ Tá precisando cortar os cabelos – tinha uns dois meses que não cortava. Gastava de deixá-lo livre. Pelo menos os cabelos não precisavam estar engessados no clima familiar que ela tentava construir, em vão.
_ Gosto dele assim.
_ Deixa de ser desleixado!
_ Eu sou do jeito que eu quiser, deixa eu ser eu!
_ Como você pode falar assim comigo e manter esse olhar debochado? – ela já estava nervosa com outras coisas, e eu só provocava ainda mais.
_ Ah! Mãe, me deixa!
_ Não vou te deixar não. Não vou te abandonar nessa cama Cláudio! – disse isso aos gritos e de olhos fechados.
_ Eu não sou Cláudio mãe, eu não to na cama, eu sou o Félix. Lembra! Você ainda tem um filho. Não sei até quando, mas tem!
Bati a porta e saí da frente dela.

16 de maio de 2010

CAPÍTULO 04 - Treco

Parecia ter acabado de sair de uma prova de triátlon. O calor que emanava do meu corpo fez-me confortavelmente sentar atrás da minha mesa e ligar no máximo o ar condicionado. Não entendo como os outros dois conseguem trabalhar desde tão cedo suportando as altas tensões de cada projeto e ainda respirar aliviados com a noite de sono bem dormida. E olha que eu sou o único solteiro dos três. Se bem que quem correu, pedalou e subiu as escadas fui eu. Eles provavelmente acordaram uma hora antes do horário do trabalho, receberam café da manhã já preparado pelas suas esposas, vieram de carro pro trabalho e ainda subiram os únicos quatro andares do prédio de elevador. É mais uma das (des)vantagens de cidade pequena. Nenhum prédio possui mais de quatro andares. Por isso não entram na exigência do uso de elevadores. Isso torna o prédio onde a tri-ECOtd funciona um ponto turístico da cidade.

Depois de três minutos o ar esfriou o suficiente pra me deixar confortável. Os olhos estão fechados desde quando me sentei. Um lapso das memórias recentes me fez esquecer que estava atrasado. Pelo menos deu pra esfriar a cabeça. Mas esfriou até demais. Aliás, está muito silencioso aqui! Cadê todo mundo?

_ Ei! Alguém viu meu blazer por aí?

Por cinco segundos o silêncio ainda permaneceu.

_ Você chegou, nem percebi! Sabe que o Renan está uma arara hoje né! – Disse Rômulo tirando o fone do ouvido. Estava incrustado atrás do computador preparando as pranchas de apresentação do projeto que vamos entregar essa semana.

_ Por causa do projeto Hellen? – costumamos chamar os projetos pelo nome do cliente.

_ Por que mais, sabe que fica de TPM toda semana que temos um projeto pra entregar. Esse ainda está meio atrasado, daí você já viu.

_ Você está trabalhando nos layouts externos?

_ Não! Esses eu já terminei. Tô preparando as pranchar pra receber os projetos executivos. Você já os terminou?

_ Ainda não! Viu meu blazer? – é a segunda vez que pergunto isso!

_ Não, mas deve estar debaixo da sua bagunça, suas coisas estão sempre na sua “bagunça particular”. Mas se eu fosse você, em vez de vestir o blazer, diminuiria o ar condicionado. Daqui a pouco o representante da construtora vai passar aqui e é você mesmo que gosta de manter a pose de ecologicamente correto!

A tri-ECOtd foi idealizada nas férias de 2008. Eu, Técnico em edificações, Rômulo, engenheiro ambiental e Renan, designer gráfico e futuro arquiteto, nos encontramos depois de algum tempo sem nos vermos. Crescemos no mesmo bairro. Sempre nos encontrávamos nas peladinhas na rua da praça. Morávamos em um bairro bem tranqüilo. Depois de longas conversas noturnas percebemos ter interesses comuns. Queríamos ter independência profissional e curiosamente pensávamos em seguir uma tendência mundial voltada para a sustentabilidade, para o ecologicamente correto e para o as inovações. Depois de um ano e meio Rômulo, o mais velho dos três, que já estava instalado por aqui, percebeu a abertura do mercado nessa região e como a cidade onde morava era um ponto estrategicamente localizado no que diz respeito à demanda de clientes. Ele fez contato e, sem muito pensar, eu e Renan embarcamos nessa aventura. Mudamos para a mesma cidade e abrimos a nossa empresa de tecnologia e designe ecologicamente correto. Como éramos três os sócios, depois de alguma discussão, chegamos a um acordo e a batizamos de tri-ECOtd, ou Trieco, como chamamos no dia-a-dia. Rômulo gosta de chamá-la de “Treco”, só pra chatear o Renan. Nossos trabalhos mais freqüentes são as adaptações de projetos residenciais e comerciais para os moldes auto-sustentáveis. Mas também trabalhamos com projetos rurais e florestais. Depois de um ano, ainda estamos no mercado. Essa área tem crescido muito. E nosso futuro é promissor. Mas essas perspectivas não nos deixam mais tranqüilos. Muito menos o Renan.

_Bagunça, como se você fosse o mais organizado! – ele não tem quase nada seu nesse escritório. Eu, em compensação, tenho tanta coisa que me sinto em casa. Passo tanto tempo aqui quanto lá em casa.

_Onde você costuma colocá-lo?

_Dentro do armário dos projetos!

_E não está lá?

_Não, se estivesse eu não estaria procurando!-nesse instante Renan entrou no escritório, mas no calor da procura não percebi. Rômulo, em compensação, voltou a se enterrar no teclado do computador.

_Ah! Mas vocês vão ter que me dar uma explicação bem plausível pelo sumiço do meu blazer.

_Pois eu tenho uma boa para você! – disse Renan, ainda parado perto da porta.

Virei-me assustado para ele. Sua expressão de calma e serenidade é a que mais me assusta. Desde sempre prefiro que briguem comigo pelos meus erros do que os exponham para que eu mesmo perceba as tolices que tenho cometido.

_Imaginei que seu atraso fosse por preocupar-se vir de casa com tudo que você precisa para estar bonitão e arrogante no trabalho.

_Como? – o que ele quis dizer com isso.

_Sua imaturidade ainda é latente em seus atos Félix. Como você permanece tão tranqüilo à procura de um blazer com o projeto Hellen atrasado e uma reunião com o representante da Construminas daqui a pouco? Agora, imagina só, Iniciamos a reunião, e peço pro Rômulo pegar o projeto no armário dos projetos, ele abre a porta e cai um blazer cinza, levando consigo uma pilha de pastas e papéis, que forram o chão completando a decoração bagunçada que você, com seu toque particular, tem implementado no escritório.

_Então você viu meu blazer? Onde o colocou?

_Você prestou atenção no que eu disse? – agora sua face tranqüila desaparecera.

_Claro que sim, mas estou começando a me incomodar com o frio do condicionador.

Ele se dirigiu até minha mesa, pegou o controle do ar condicionado e o desligou. Seguiu até a janela, e como cena de filme, abriu as cortinas em um arranque só, deixando as enormes janelas emoldurarem aquela vista da pacata cidade de interior, com a torre da igreja sobressaindo às outras edificações, um céu azul sem nuvens e as montanhas de minas rodeando tudo isso. Por um instante parei para apreciar a vista, mas logo fui interrompido, já que Renan, a essa hora, não dava a mínima para a beleza do horizonte.

_Pronto, agora você não mais precisará do seu blazer!

_Isso não quer dizer que eu não precise do meu blazer! Onde ele está?

_No lugar onde sempre deveria ficar. O Armário do closet! – originalmente o prédio onde montamos o escritório era residencial.

_E por quê? Se ele fica do outro lado do escritório e o armário de projetos tem várias prateleiras vazias e é do lado da minha mesa?

_Félix, preciso do projeto executivo! – em vez de ajudar a amenizar a situação, Rômulo põe mais fogo na conversa.

_Chega atrasado, senta-se tranquilamente sob o ar frio do condicionador e se dá ao luxo de preocupar-se com um blazer cinza quando se tem uma renca de plantas, decisões e preparativos pela frente.

_Está no meu pen-drive, pega na minha bolsa – isso saiu como um grito abafado de raiva ao Rômulo, o grito que não tinha coragem de dar ao Renan, só que não o abafaria – alguma vez deixei de fazer meu trabalho nessa empresa? Alguma vez fui (de todo) irresponsável? – depois percebi que foi arriscado perguntar isso ao Renan, talvez não tivesse tanta categoria para retrucar se ele conseguisse responder a altura.

_Ótimo, agora sua eficiência é justificativa para suas falhas?

_Eu sempre termino antes do prazo, faço na última hora mas faço o que tenho que fazer!

_Onde você disse que está? – gritou Rômulo.

_No compartimento externo da bolsa, o com zíper!

_Não quer dizer que seja a melhor forma de fazer seu trabalho – voltou a importunar Renan – deixa todos na mão, atrasados com os projetos por sua causa...

_Eu faço o que tenho que fazer, e não venha me tratando como se você fosse o chefe porque...

_Eu dei o pontapé inicial nessa empresa, se a Trieco funciona como funciona...

_É porque todos damos duro aqui pra que isso aconteça!

_Achei o pen-drive! – gritou Rômulo tirando a cara de dentro da bolsa.

Nesse instante perdemos o rumo da conversa e olhamos para Rômulo.

_O que foi gente, podem continuar discutindo, eu tenho muito trabalho pela frente!

Renan voltou a olhar para mim, mas desviei o olhar para a janela, que, apesar das cortinas abertas, permanecia fechada. A pacata cidadezinha continuava emoldurada alheia à nossa discussão. Rômulo já estava sentado no seu computador e Renan decidiu desistir de dar uma de chefe comigo.

Voltei para trás da minha mesa, e sentei-me. Peguei o controle do ar condicionado e o liguei, dessa vez regulado para uma temperatura menos fria.

Odeio essas situações no serviço. O clima pesa, os olhos não se olham. O clima esfria e o trabalho não rende. Mas, em algumas horas tudo volta à normalidade. Pelo menos era o que parecia.

_O que é isso? – perguntou assustado Rômulo, aumentando o volume do som de seu computador.

Uma música, um rock, se é que isso é um rock começou a ecoar no escritório: “Agora que estou, tendo que me esconder, tua mãe quer me matar e teu pai me prender...”

_De onde você tirou isso? Perguntou Rômulo olhando pra mim como se eu pudesse explicar!

“...eu tenho aquele estilo que te deixa preocupado...”

_Porque você ta olhando pra mim?

_Por que isso vem do seu pen-drive!

_Como? – nessa hora uma voz voltou à minha cabeça: “Coloquei algumas das minhas músicas nele. Foi mal!”- Nice!

_Nice, quem é Nice? Ta saindo com alguém e não me disse? – Rômulo perguntou assustado, como se tudo isso fosse um furo de reportagem.

_Está explicado o atraso e toda essa frescuragem do blazer! – disse Renan voltando-se para mim com a face tranqüila e ameaçadora de novo.

_Não, Nice é a filha do vizinho!

_Você ta saindo com a filha do seu vizinho? Quantos anos ela tem?

“... não venha me dizer o que é melhor pra mim, a vida vai mostrando sempre foi assim...”

_Esse é meu mp3 player, não o pen-drive!

_Deve ser uma pirralha, provavelmente patricinha esnobe mal educada!

“...na escola fugir, na rua comer...”

_Não, ela é atleta, nos conhecemos durante uma caminhada...

_E você se fazendo de santinho, não conta pros amigos nada desses assuntos, á minerim mesmo!

_Isso sim é que é responsabilidade! Por acaso é alguma vegetariana, alpinista, “ecologicamente correta”? – Renan nunca faz piadinha que faça sentido, o que tem a ver alpinista com ecologicamente correta?

_Fica fazendo o tipo executivo, mas pegando as gatinhas do condomínio!

_Que isso Rômulo, respeito, eu não sou...

_O que você tem que eu não tenho, essas coisas nunca acontecem comigo!

“...eu não tenho classe, eu não sou ninguém, eu não tenho herança que te convem...”

_Gente vocês estão confundindo as coisas, não é bem isso! Eu tava caminhando outro dia, daí ela apareceu (com aquela coxa durinha) querendo companhia, eu não tive...

_Quantos anos ela tem? Deve ter idade pra ser sua filha! – Renan é o único que tem filhos, uma menina e um menino, encarnou o pai da Nice querendo me acusar de algo.

“...mas eu sou quem te faz tão bem!”

O interfone tocou.

_Sei lá, uns dezesseis!

_Gente, acho que o representante chegou! – disse Rômulo.

_Deixando de fazer seu trabalho pra se satisfazer com uma menor, isso dá cadeia sabia!

_Eu nem...

O interfone ligou de novo.

_Gente, o representante!

Renan foi até o interfone, abriu o portão sem nem perguntar quem era.

_Assuma sua responsabilidade, deixe seus problemas pessoais fora daqui! – Renan disse isso e virou dirigindo-se para sua sala.

_Eu disse no pen-drive, não no mp3!

_Foi, mal!

_Desliga isso! – disse enquanto ia até a porta.

_Mas preciso dos projetos!

Ele desligou o som, deu pra ouvir a porta do elevador abrindo e os passos no corredor. Não esperei que tocassem a campainha, abri a porta.

_Bom dia Marcos!

_Bom Dia José Félix!

_Entre, estávamos te esperando pra reunião!

Renan saiu da sua sala com um enorme sorriso no rosto como se nada tivesse acontecido.

_Félix, traga-o pra sala de reuniões! Bom dia Marcos! Aceita um café?

_Renan! Renan, sempre querendo agradar, um café seria bom!

_Félix, traga um café pra ele! – quando disse isso, o sorriso não estava mais estampado em sua cara e o sarcasmos voltava a reinar. Olhei para Rômulo, ele olhou pra mim e disse:

_Boa reunião! Trás um cafezinho pra mim também!

_Tá! – tudo o que eu queria e não ter conseguido chegar ao trabalho hoje! Talvez essa seria uma vantagem de se morar em cidades grandes, congestionamenots...

Fui até a cozinha, peguei os cafezinhos, passei no armário onde devia estar meu casaco e peguei os projetos que precisava-mos, passei no armário do closet, peguei meu casaco, olhei novamente para Rômulo.

_O pen-drive ta na bolsa, pega logo aquele treco e vai trabalhar. Hora do show!

Entrei sorridente na sala de reuniões.


(música: Paraíso Proibido - Strike)

5 de abril de 2010

CAPÍTULO 03 - Sinais

O trânsito em aumentado recentemente. A cada dia aparecem novas casas e obras no condomínio, e o trajeto até o centro da cidade fica cada vez mais movimentado. Poucos usam uma bicicleta, como eu, apenas alguns estudantes. A maioria das pessoas vão para o trabalho ou atividades de carro. O número de motos vem crescendo, mas os carros ainda predominam. De vez em quando é possível encontrar um cavalo ou carroça nas ruas. E cidade pequena nunca é previamente planejada. As ruas são criadas meio que ao acaso, e a fluência do transito cada vez pior.

As cidades pequenas cada dia mais têm tomado para si características das cidades grandes. Nem mesmo ir conversar com os vizinhos na calçada faz parte das atividades diárias. Se eu posso simplesmente ligar pra ele e falar o que eu preciso, porque sair de casa? Por falar em ligar, onde foi que eu pus mês celular? Será que estou atrasado?

_ Achei! – com um pouco de dúvidas se aquilo era mesmo meu celular. Andar de bicicleta e mexer na mochila ao mesmo tempo é difícil. Mas já estou acostumado. Meu espírito de aventureiro me permite o risco de andar sem as mãos no guidon. O prazer e o sentimento de liberdade também me estimulam a correr tal risco.

Não era o celular. Essa é uma das desvantagens de não usar relógio. Mas fazer o que? Não me acostuma com nenhum! Pelo menos já estou no centro da cidade. Pergunto ao primeiro conhecido que eu achar. Alguém conhecido à vista? Não. Ainda me parece cedo, pouco movimento nas ruas. Mesmo assim, tive que parar na faixa para algumas senhoras atravessarem.

_ Bom dia meu filho! – disse uma delas. Era a senhora dona da padaria que compro os pães.

_ Bom dia pra vocês também! – sei que é respeitoso chamar pessoas mais idosas de senhor e senhora, mas ainda não me acostumei.

_ Cuidado com essa bicicleta Felix! – Essa não era a voz de nenhuma das senhoras. Era Borges, indo pro trabalho na cidade vizinha. Tinha parado de carro ao meu lado, também esperando que as velhinhas atravessassem a rua.

_ Ah! Borges, bom dia! Pode me informar as horas?

_ Claro! – ele olhou o painel do carro.

_ Seis e doze.

_ Obrigado! – É, estou atrasado.

_ As babás estavam te espiando hoje de novo! Esqueceu a cortina aberta mais uma vez?

_ É! Não me acostumei com isso! A pressa, é a pressa! Essa correria de cidade grande que invade o interior!

_ É, e falando de cidade grande, tenho que ir pro trabalho. Até outra hora!

_ Até!

Borges arrancou o carro, deu seta à esquerda e rapidamente sumiu de vista.

Esse movimento me fez perceber a placa de pare antes da faixa de pedestre que estava a minha frente, e a placa de controle de velocidade um pouco à frente (que indicava uma velocidade bem menor do que a que Borges havia atingido ao arrancar).

Odeio placas, sinais. Nunca fui bom com eles. Prefiro mesmo minha bicicleta. Se bem que ela não me isenta dos sinais de trânsito.

Não cresci em uma cidade pequena. Nasci, cresci, estudei e me formei em Belo Horizonte. Sempre muito desatento. Tantas placas, letreiros, pessoas. Não conseguia me concentrar em uma só coisa. Foi uma tortura passar na prova de direção quando completei meus dezoito anos. Nessa época eu era mais ligado nas coisas. Já sentia a importância dos sinais que nos eram impostos na rua. Mas algumas saias curtas facilmente me tiravam a atenção. Alguns cabelos esvoaçantes, alguns sorrisos direcionais e olhares cruzados. Os hormônios afloravam e ativavam os radares nos olhos ouvidos e olfato. Mas a boca, essa permaneceu fechada. Nada além de palavras, e isso quando ninguém estava ouvindo.

Essa foi uma época complicada. O terceiro ano do ensino médio tinha acabado de terminar. Aquela fase em que eu não tinha amigos, me excluíam por me acharem diferente. Investigavam-me por não me expor tão facilmente. Especulavam-me por não demonstrar meus sentimentos. Tudo isso porque não me importavam as regras impostas pela sociedade (pelo menos a sociedade da minha idade) sobre como me vestir, aonde ir, como ser, como amar.

Nunca segui as leis sociais como devia. Nunca fui bom em entender os sinais. Hoje sei que fui amado sem perceber, mas também amei, sem saber. Nunca entendi os meus próprios sentimentos. Minhas reações, minhas emoções. Precisava fazer auto-escola emocional, aprender e entender os “sinais de trânsito emocional”. Fui reprovado duas vezes no exame de rua. Fui reprovado no mínimo dez vezes no exame do amor. Se é que era amor.

Peraí, porque estou perdendo meu tempo parado aqui na faixa se eu estou atrasado pro trabalho?

Pés no pedal. Mochila nas costas. O Renan deve estar uma arara comigo! Temos que revisar um projeto pra essa semana ainda. Mais algumas curvas e já estou lá. Mais algumas pedaladas. Vou ter que trocar de roupa antes de começar o trabalho, essa já está um pouco suada. Espero que o blazer cinza realmente esteja no escritório.

Entro com a bicicleta na garagem do prédio, trabalho no segundo piso. Meus pés estão meio calejados. Não sei por que insisto em usar esses sapatênis! Prefiro muito mais minhas sandálias de pneus ou meus tênis que comprei paras as caminhadas. Tudo pela aparência profissional que infelizmente temos que manter. Trancar a bicicleta e subir as escadas é tudo o que falta pra chegar à minha sala e ouvir os murmurinhos dos que chegaram na hora certa.

Entro na vão de circulação vertical do prédio. Tiro minha mochila nas costas, sento nos primeiro degraus das escadas. Espero um pouco pra retomar o ar que falta nos pulmões. Cinco minutos a mais no atraso não farão diferença. Hoje posso interpretar melhor meus próprios pensamentos, meu respirar. Posso ler meus sinais. Tive que quebrar muitas barreiras pra me entender melhor. Mas daí a dizer que posso entender melhor as pessoas ao meu redor, principalmente as mulheres, é demasiadamente exagerado. Aproveito esses instantes para pensar nos defeitos que estão incrustados na minha vida sentimental. Não consigo interpretar o tempo que se passou desde aquela época até agora.

Recoloco a mochila nas costas, e começo a subida pro trabalho, retomo a subida da minha vida.

26 de março de 2010

CAPÍTULO 02 - "It's all right"

Passo a passo afasto-me do que chamo de lar, do aconchego do conhecido e previsto. O meu exterior entra em contato com o mundo exterior. O meu ser conversa com o ar que não me parece muito puro, apesar de eu morar em um condomínio não muito longe do centro. Isso é conseqüência de se morar no interior. Tudo fica muito perto. Isso facilita minhas idas e vindas do trabalho. Atualmente tenho feito esse percurso de bicicleta, tento dar o exemplo “ecologicamente correto”, isso faz bem pra minha imagem na empresa. Mas deixa pra eu falar nela mais tarde. Por onde andava? Ah! Sim, o ar puro do condomínio. Depois de alguns anos trabalhando e vivendo de aluguel, resolvi investir em um terreno desse condomínio. Pareceu-me promissor. O terreno é bem no meio da quadra, o que me deixa meio constrangido, já que depois de investir no terreno, pouco me restou para investir na casa. Como não tinha família, e planejava ter uma bem mais tarde, usei meu pouco talento na arquitetura pra projetar uma caixa. Alguns amigos no trabalho me ajudaram. Ficou bem minha cara: quadrado, pequeno, alto, transparente mas sombrio, forte e aparente, rústico mas com um toque de sofisticação, mal acabado propositalmente. Achei que seria difícil me acostumar quando vi o projeto sair do chão. Foi bem mais fácil do que eu imaginava. A vizinhança também ajudou. Ainda tem poucas casas por aqui. A minha direita, uma enorme casa branca onde mora um casal de meia idade muito envolvido com todo tipo de artes. Roberto e Clara. De vez em quando posso ouvir a vitrola tocando um jazz ainda no vinil. Clara, sempre no quintal dos fundos a pintar, esculpir ou a cuidar de seu jardim. A esquerda uma família do Carlos Borges, executivo que cismou em morar longe do trabalho. Quase não vejo ninguém na casa. As crianças às vezes saem com as babás. Sempre a observar-me e cochichar. Minha caixa lar não me dá muita privacidade às vezes. A lateral esquerda é quase toda em vidro, o que me deixa à mostra quando me esqueço de fechar as cortinas e troco de roupa. Não sei até que ponto posso considerar-me formoso. Ta bom, tenho um certo cuidado com meu corpo apesar de já estar chegando nos trinta. Um metro e oitenta de altura, academia duas vezes por semana (quando não tenho serviço extra), o que não me garante um “abdômen tanquinho”, mas nada que permita alguém chamar-me de gordo, é apenas uma gordurinha que esconde meu abdominal. Tenho a mania de caminhar sem camisa para pegar um sol, o que deixa as babás do vizinho mais alvoroçadas, assim como a adolescente da casa da esquina. Ainda não consegui conhecer sua família. Mas a julgar pelo seu comportamento... Às vezes me encontro com ela na caminhada. Ela sempre tenta me acompanhar e falar ao mesmo tempo. A capacidade que ela tem em me deixar sem graça é impressionante. Segunda passada ela estava sentada na mureta da calçada e quando passei me cumprimentou:

_ Oi!

Tirei o fone de um dos ouvidos e respondi.

_ Bom dia, Janete! – sempre finjo que não lembro o seu nome, pra ver se ela percebe que não presto atenção nela.

_ Janice. Nice, pode ser só Nice mesmo!

_ Ah! Sim, Nice.

_ Sempre na mesma hora né! Posso te fazer companhia?

_ Ah! Bem, sim, seria ótimo – nessa hora eu vesti a camisa, não acho que fez muita diferença.

_ Pode ficar a vontade, não precisa vestir a camisa por minha causa, eu também me sinto bem confortável sem roupas. Costumo dormir só com a parte de baixo do pijama. Você não prefere dormir sem camisa também? – tinha no rosto uma serenidade teatral que me constrangeu profundamente.

_ Minha casa não me permite certas regalias.

_ Já reparei, de vez em quando te vejo deitado quando faço uma visita pra Carol e pra Glória.

_ Carol e quem? – não conheço nenhum morador que tenha duas filhas que poderiam ser amigas da Janice, ainda mais que morasse perto da minha casa.

_ As babás da casa vizinha à sua, sabe? Da casa do Borges!

_ Ah! Sim.

A esta altura eu já estava dando a segunda volta à quadra em que morava, imaginei que ela não agüentaria mais que uma volta e logo desistiria, estar perto de casa talvez a ajudasse a desistir mas não era bem o que ela imaginava.

_ Há quanto tempo você caminha? – perguntei como se estivesse interessado.

_ Na verdade eu corro, faço atletismo no clube. Tenho um vigor e fôlego invejáveis pras garotas patricinhas e sedentárias da minha escola. Não quer dar uma corridinha?

Disse isto dando uma acelerada nas passadas. Ela estava com uma calça collant amarela que delimitava perfeitamente sua bunda. Aquelas coxas ainda novinhas, provavelmente sem estrias. Uma camisa mais soltinha que dava certa privacidade aos seios, mas instigava o mais experiente detetive a querer ver algo a mais. Como não prestar atenção. Como agir diante de tal cena. Meus pés continuaram na mesma velocidade. Ela tomou uma boa distância de mim até perceber que eu ainda estava anestesiado com a situação.

_ Você não vem tio?

Isso foi só pra provocar. Afinal das contas ela tem o que, uns dezesseis, dezessete anos. Qualquer cara do meu trabalho ficaria louco se estivesse no meu lugar. Qualquer cara normal. Acelerei mais do que podia pra alcançá-la. Mas tinha que manter a pose. Todo esse cuidado com o corpo, com o visual, cabelos sempre bem cortados, blazer sempre meio desbotados sobre um jeans de marca, alimentos orgânicos (vantagens de se morar em cidade pequena) e as caminhadas são parte do plano de não envelhecer parecendo velho. Ainda estou na adolescência quando se diz respeito ao amor. Aliás, à adolescência de alguns anos atrás, não a adolescência da Nice. Um corpo perfeito e provocante, uma cabeça aberta e cheia de informações pós-modernas, inclusive com relação à sexualidade.

Minha camisa começou a grudar no corpo. Minha mente fervia e meu corpo suava. Por causa disso percebi quão rápido batia meu coração. Uma pausa na corrida que deu pra sentir a dor na panturrilha. Dei uma olhada no relógio. Já estava atrasado. Na verdade, se não corresse pra casa iria me atrasar de verdade.

_ Nice, tenho que voltar! – estávamos a alguns quilômetros de casa.

_ Já Félix?

Félix. Assim que me chamam. Fui registrado com o nome de meu bisavô, José. Mas meu pai, não satisfeito acrescentou um Félix à minha graça. Tudo isto seguido pelos nomes das famílias do qual sou sucessor: Bragança e Prado. José Félix Bragança Prado. Queria poder ser reconhecido pelo nome mais comum, José. Mas preferem me chamar de Félix. Não acho ruim, até gosto.

_ Alguém tem que trabalhar né!

_ Tá! Te vejo outro dia, vou continuar correndo. Me empresta se mp3 player? Esqueci o meu!

_ Bem, tudo bem! – nem lembrava que em uma das minhas orelhar um pequeno dispositivo produzia algum som. O tirei tão rapidamente, que nem deu pra reconhecer a música que estava tocando na hora!

_ Adoro essa banda! – o que será que ela ouvia? O que será que ela pensaria de mim depois de ouvir minha lista de músicas para caminhar? Tudo isso era parte do plano dela para ter assunto pra ir fofocar com as babás do vizinho e me espionar ao sair do banho e trocar-me correndo por causa do atraso que aquela conversa causou.

O coração batia acelerado, só de lembrar daquela conversa, daquela corrida. Nice. Tanta inconseqüência e juventude investida em um cara como eu. Aliás, ela ainda está com meu mp3 player. Gosto de ir pedalando e ouvindo boa música pro trabalho, essa semana a música fez muita falta. Acho que vou passar na casa dela pra pegar de volta.

Tenho a impressão que emagreci. Tenho que encher o pinéu da bicicleta, ta ficando pesado pedalar assim! Mais um dia sem tempo de fazer a barba. Até gosto dela por fazer, mas ta passando dos limites. Onde está o blazer cinza? Será que deixei no escritório de novo!

_ Merda! – saiu um grito meio que sem querer!

Tênis, óculos, mochila, tudo aqui. Cadê o celular? Em cima das caixas de feira, ao lado da cama.

_ Merda! – esse foi por querer, esqueci de fechar as cortinas de novo! Pelo menos não tenho o costume de sair sem cuecas do banheiro.

Estou em cima da hora. Tranco a casa, Corrente da bicicleta. Beleza. Tudo certo. Nada de errado, tudo certo. Reclamar do que, sendo quem sou, morando onde moro. Somente uma longa pedalada até meu trabalho.

_ Ah! O mp3!

Paro em frente à porta, o cabelo não ta muito bom hoje! Alguém abre a porta, nem toquei a campainha ainda!

_ Nice, é o cara! – disse alguém uniformizado, um pouco mais novo que Nice.

_ Félix! O que faz aqui?

_ Vim buscar meu mp3 player, pode me devolver?

_ Claro! Tá no meu quarto, vamos lá pegar?

_ Estou com um pouco de pressa, e tem a bicicleta, vou esperar aqui mesmo! – ela não entende mesmo.

_ Tá, um momento!

Ela deixou a porta entreaberta. Estava meio bagunçada a casa. Uma decoração meio clássica mas muito colorida. Um cachorrinho veio latindo pro meu lado. Que raça era essa?

_ Micha! Quieta! – gritou ela das escadas.

O garoto uniformizado veio e levou a cachorrinha pra dentro. Meio sério o garoto!

_ Coloquei algumas das minhas músicas nele. Foi mal! É que você veio meio que sem avisar, não deu tempo de tirá-las.

_ Tudo bem! Pode deixar!

Joguei o mp3 na mochila. Estava tão preocupado com o horário que nem perdi tempo escolhendo uma música pra ouvir, ou mesmo ligando o aparelho.

18 de março de 2010

CAPÍTULO 01 - O SONHO

Jamais pude ver beleza maior que aquela. Olhos que refletiam o azul do céu de forma tão pura que o próprio céu achava-se envergonhado por fazer parte de sua beleza. Ela estava em meus braços. Perto demais. A ponto de não conseguir vê-la por inteiro. Seus cabelos escuros cobriam seu nariz. Ela está contra o vento. Sua face brilha com o entardecer que se aproxima, deixa sua pele dourada. As árvores ao nosso redor cantam uma melodia orquestrada pelo vento, acompanhada pelo canto dos rouxinóis e canários amarelo ouro. Ela se vira, corre. Parece fugir de mim. Parece assustada. Mas seus olhos me cativam, me gritam, apesar de só conseguir ouvir o vento nas árvores. Não creio que fuja de mim. Não sei quem ela é, não me lembro. Mas sei que já a tive, e a terei novamente em meus braços. Por isso a perseguição. Seu vestido pesado amassa a grama por onde ela passa. A distância diminui. Está ao alcance de um braço. Minha mão a segura firme pelo braço. Ela vira com um solavanco, parando com a outra mão apoiada em meu peito. Meu outro braço a segura com um abraço. Sinto sua respiração forte e assustada em meu pescoço, seu coração bate acelerado, seus cabelos misturam-se ao seu suor, grudados em seu rosto. Nenhuma palavra. Seu olhar, que mistura fúria e medo, agora está fitado em meus olhos. As rugas de sua testa mostram o quanto está assustada. Sua pele quente e úmida desliza sobre meus dedos que tentam descobrir os segredos das curvas de suas costas nuas. Ela desvia o olhar e apóia sua cabeça sobre meu ombro que movimenta-se com o respirar ofegante de meus pulmões. Minhas mãos chegam ao seu pescoço e seguram sua cabeça. O próximo movimento coloca-nos novamente com os olhos fitos nos olhos do outro. A respiração cessa. Sua mandíbula relaxa um pouco, deixando que seus lábios róseos se separem. Não consigo sentir sua respiração, apesar dos meus lábios estarem a pouca distância dos dela. Ela parece desconfiada dos meus propósitos, apesar de eles estarem bem claros. Mesmo assim permite o toque, que desbloqueia o ar preso em meu pulmão. Ela resiste no início. Não consegue abrir seus olhos. Seus lábios não correspondem aos movimentos dos meus. O tempo parece longo demais quando não se é correspondido. O rosto que deveria estar quente parece frio. Desisto da primeira tentativa. Minha boca se afasta da dela, minhas mãos fazem com que seu rosto volte-se para o meu. Olho fixamente para ela. Ela abre os olhos mas olha para baixo. Minhas mãos ainda em sua nuca acariciam seus cabelos rebeldes. Ela sente o toque da pele estender-se por toda a coluna, o que a estimula a olhar novamente em meus olhos. Arrisco uma aproximação. Seu olhar não mais desvia. Sua respiração volta a ser ofegante. Seus lábios se fecham a espera do segundo toque. Paro por um instante procurando um defeito nos fatos que se passaram, minha mente não consegue distinguir o tempo em que tudo aquilo acontece. Então os lábios se tocam novamente, agora é possível sentir o calor do beijo que é correspondido. Nossas bocas se abrem permitindo que nossas línguas se toquem. Uma rajada de reações e impulsos invadem meu cérebro. O toque áspero e suave das línguas ativa emoções que não podem ser descritas por alguém que nunca as sentiu. O tempo parece longo demais quando se está sob o controle de um beijo. Podia sentir sua suas mãos procurando algo para apoiar. Logo ela encontra minhas costas, mas o que sinto não é apenas uma mão em busca de carinho. Ela se apóia firme sobre minha lombar, seus dedos se fecham apertando forte minha camisa. A força do outro braço que permanece em minhas mãos começa a desvanecer, seus lábios perdem a ardor do beijo. Seus olhos começam a perder o azul vital do céu e começam a refletir um cinza pálido. Ela perde o foco. Sinto o peso de sua cabeça em minha mão. O susto invade meu ser, e como se algo me repelisse dela meu beijo se solta do dela, minhas mãos se afastam de sua cabeça e braço. Nesse instante sua cabeça começa a tombar pra traz, em um movimento acelerado e contínuo que é acompanhado por todo o corpo. Novamente minha respiração para ao ouvir um suspiro fundo e seco que sai da boca dela. Seu corpo está em movimento de queda, minha mão não mais segura sua cabeça, seus cabelos cobrem seu rosto, seu vestido pesado só a puxa para baixo. O Vento cessa. Os pássaros não mais cantam. Um grito ecoa em minha mente, mas nenhum som é emitido pela boca, apesar de eu poder sentir o vibrar da minha garganta. Ela encontra-se com o chão em um colchão de folhas, suas mãos ainda em queda parecem fazer um último pedido de ajuda. Algumas folhas secas são levantadas ao vento, junto com elas uma lagarta que andava vagarosamente sobre uma delas. Os pássaros saem em revoada das copas das árvores. As folhas verdes caem como chuva. Ao se aproximarem do chão elas vão se tornando mais escuras, quase secas. A lagarta, agora sobre seu vestido, se contorce para virar-se e continuar sua lenta caminhada. Seus olhos permanecem abertos. Os meus não sabem mais para onde olhar. Então, num movimento lento das pálpebras elas se fecham. Sinto o suor de o meu próprio rosto escorrer, ou seria uma lágrima? Ela escorre dos olhos em direção à orelha. Isso parece ilógico! Minha mente pára para refletir sobre a lágrima como se nada do que meus olhos viram fosse verdade. Se a lágrima escorre dos olhos em direção à orelha, provavelmente estou deitado, e não em pé como parece. Meus olhos se abrem para constatar mais uma verdade. Acima de mim só o teto de meu quarto. Minha boca se abre como por um impulso, minha cabeça se levanta em uma profunda respiração que me acorda alarmado. Na parede à minha frente o ponteiro dos segundos do relógio parece parado. Minhas mãos procuram meus óculos na mesinha ao lado da cama. Ao colocá-los percebo que o ponteiro de segundos se desloca como sempre, de segundo a segundo.
_ É cedo demais.
O sol ainda desponta no horizonte. E a imagem dela não sai da minha cabeça. Mais uma noite perturbado pelo fantasma da mulher morta sem nome, sem rosto, apenas pedaços de uma história do qual só sei o final. Os olhos não são mais capazes de se fechar. A coluna procura uma melhor posição. Sento-me na cama. Meus olhos olham pelo vidro da janela um sol que inconsciente incomoda minha visão. Visto uma roupa. Calço um tênis. Ligo o meu mp3 player, que toca voluntariamente “Here comes the Sun”, dos Beatles. Saio para uma caminhada. Ainda é cedo demais. Não tenho mais nada a fazer nesse sábado.

11 de fevereiro de 2010

MORTE AO AMIGO

Mais que uma pessoa que está sempre ao seu lado, um amigo pode determinar sua vida, sua rotina, suas alegrias e tristezas. Tenho sido amigo. Amigo de muitos. Amigo de muitas. E não posso afirmar com veemência e alegria que isto tem me trago alegrias. Um sorriso estampa meu rosto. Mostro os meus dentes, nem sempre brancos. Consigo ser feliz. Sou feliz. Mas o próximo passo exige mais que isto. Deparo-me com informações (vindas de fontes femininas) que me inspiram a tomar uma decisão drástica: morte à amizade! Não me entendam mal, estou ciente de que as amizades cativadas, essas não morrerão tão cedo. Também entendo que, a atual situação de possível ex morador de Viçosa, me exigirá mais do que os amigos que por aqui ficam, ou aqueles que também partiram. Se desejo realizar meus sonhos de encontrar aquela que fará mais do que bater meu coração, preciso deixar que elas vejam meu coração. E, confesso, que ele continua escondido sobre os sorrisos amigos que cativo, e permito que as amizades conquistadas me façam quem sou, mas não necessariamente aquilo que gostaria de ser (ou de ter). Por isso declaro guerra à amizade. Parto esguio e trêmulo, sobre um cavalo preto, em busca daquela que rasgue meu sorriso e enxergue, com clareza, meu pequeno coração. Falar é fácil. Quero ver eu ter coragem de subir no cavalo e enfrentar a fera. E pra que fique bem claro, quando digo morte ao amigo, digo "morte ao amigo que há em mim".

2 de fevereiro de 2010

ENTRADA DOS FORMANDOS JANEIRO 2010

O desafio é se encontrar no vídeo! Mas alguns dos que eu gritei me ouviram! esses apareceram! o resto!
Ah! e a galera da arquitetura ficou de fora! Foi mal!

22 de janeiro de 2010

CONVERSA COM O SILÊNCIO

Ouço ruídos ao meu redor. Estou sempre rodeado de pessoas. Mas não posso vê-las. Não por isso fico sem me comunicar com elas. Sim, converso com pessoas que não vejo. Assuntos dos mais variados, e elas sempre correspondem com o silêncio, que é a única coisa que são capazes de produzir. Silêncio. E eu respondo, claro, com mais palavras e palavras, gesticulo, sorrio. Se por acaso me filmarem parecerei um louco. E as vezes pareço mesmo. Falo sozinho. Se você não é capaz de ver as muitas pessoas que estão ao meu redor me ouvindo, paciência! O louco aqui é você!

20 de janeiro de 2010

CARTA DE AMOR A INGUÉM

Porque deveria gritar ao vento que te amo?

O vento não seria capaz de guardar essa verdade.

Espalharia aos quarto cantos o amor que é só seu.

Dividiria com as nuvens o sentimento que aquece meu ser.

Isso as faria chover.

Amo-te e não nego.

Mas também não espalho.

Não dividiria tamanha alegria com quem nada tem além de inveja.

Se o amor que construído está sobre base sólida de meus átrios e ventrículos os fazem pulsar por ninguém mais que tu, porque o ar que enche meus pulmões deveria sair pela boca espalhando esse segredo oculto em meu coração para aquele que não vêem razão em eu te amar?

Amo-te e não entrego esse amor a ninguém, a não ser tu.

Se cego estou, se corrompido por este amor, se chovendo de calor, se gritando de dor...

O que importa, senão o amor.

Amo-te e não nego. Berro ao vento que mantenha em segredo. Tenho medo de perder a quem ainda não tenho.

15 de janeiro de 2010

AUSÊNCIA DE LUZ

Não sei se pode me ouvir
E isso é ridículo, pois estou te escrevendo.
Todos os meus artifícios foram usados
Assim como você me usou.
Nosso passado é meu presente
E um abismo se abriu nele.
O sol parece brilhar lá fora,
Mas posso ouvir o ruído da chuva que logo cairá.
Posso sentir o vazio desse apartamento,
Posso procurar você entre os lençóis pela manhã
Mas não vou te achar. Não vou te sentir.
Não mais te amar, não mais sorrir.
Outras mulheres virão,
Outros dias ensolarados lá fora ocorrerão,
E com frequência.
Mas as cortinas de nossas janelas estarão fechadas
Não posso ver o brilho do sol aqui dentro
Sem que ele reflita o brilho dos seu olhos.
Não posso limpar as fronhas
Sem remover seu cheiro delas.
Não posso atender a porta
Sem interromper essa nossa conversa.
Espero que esteja me ouvindo atentamente.
Espero que seja você à porta.

Era o carteiro, nenhuma carta sua.
Nenhuma notícia.
Como o sol pode continuar brilhando como se nada tivesse acontecido?
Abri a cortina pra tentar encontrar a resposta.
Você estava parada em frente ao prédio
Segurando a mão de outra pessoa.

4 de janeiro de 2010

A CONDESSA

Neste mundo não se pode ter certeza de nada.
Eu sei é que onde quer que estivesse ela teria sido culpada.
Eu a amava profundamente e acredito que ela me amava.
A História não se preocupa com isso.
A verdade está por trás de uma parede de tijolos, e o tempo sepultará a todos nós.

(Frases finais do filme A Condessa)