16 de maio de 2010

CAPÍTULO 04 - Treco

Parecia ter acabado de sair de uma prova de triátlon. O calor que emanava do meu corpo fez-me confortavelmente sentar atrás da minha mesa e ligar no máximo o ar condicionado. Não entendo como os outros dois conseguem trabalhar desde tão cedo suportando as altas tensões de cada projeto e ainda respirar aliviados com a noite de sono bem dormida. E olha que eu sou o único solteiro dos três. Se bem que quem correu, pedalou e subiu as escadas fui eu. Eles provavelmente acordaram uma hora antes do horário do trabalho, receberam café da manhã já preparado pelas suas esposas, vieram de carro pro trabalho e ainda subiram os únicos quatro andares do prédio de elevador. É mais uma das (des)vantagens de cidade pequena. Nenhum prédio possui mais de quatro andares. Por isso não entram na exigência do uso de elevadores. Isso torna o prédio onde a tri-ECOtd funciona um ponto turístico da cidade.

Depois de três minutos o ar esfriou o suficiente pra me deixar confortável. Os olhos estão fechados desde quando me sentei. Um lapso das memórias recentes me fez esquecer que estava atrasado. Pelo menos deu pra esfriar a cabeça. Mas esfriou até demais. Aliás, está muito silencioso aqui! Cadê todo mundo?

_ Ei! Alguém viu meu blazer por aí?

Por cinco segundos o silêncio ainda permaneceu.

_ Você chegou, nem percebi! Sabe que o Renan está uma arara hoje né! – Disse Rômulo tirando o fone do ouvido. Estava incrustado atrás do computador preparando as pranchas de apresentação do projeto que vamos entregar essa semana.

_ Por causa do projeto Hellen? – costumamos chamar os projetos pelo nome do cliente.

_ Por que mais, sabe que fica de TPM toda semana que temos um projeto pra entregar. Esse ainda está meio atrasado, daí você já viu.

_ Você está trabalhando nos layouts externos?

_ Não! Esses eu já terminei. Tô preparando as pranchar pra receber os projetos executivos. Você já os terminou?

_ Ainda não! Viu meu blazer? – é a segunda vez que pergunto isso!

_ Não, mas deve estar debaixo da sua bagunça, suas coisas estão sempre na sua “bagunça particular”. Mas se eu fosse você, em vez de vestir o blazer, diminuiria o ar condicionado. Daqui a pouco o representante da construtora vai passar aqui e é você mesmo que gosta de manter a pose de ecologicamente correto!

A tri-ECOtd foi idealizada nas férias de 2008. Eu, Técnico em edificações, Rômulo, engenheiro ambiental e Renan, designer gráfico e futuro arquiteto, nos encontramos depois de algum tempo sem nos vermos. Crescemos no mesmo bairro. Sempre nos encontrávamos nas peladinhas na rua da praça. Morávamos em um bairro bem tranqüilo. Depois de longas conversas noturnas percebemos ter interesses comuns. Queríamos ter independência profissional e curiosamente pensávamos em seguir uma tendência mundial voltada para a sustentabilidade, para o ecologicamente correto e para o as inovações. Depois de um ano e meio Rômulo, o mais velho dos três, que já estava instalado por aqui, percebeu a abertura do mercado nessa região e como a cidade onde morava era um ponto estrategicamente localizado no que diz respeito à demanda de clientes. Ele fez contato e, sem muito pensar, eu e Renan embarcamos nessa aventura. Mudamos para a mesma cidade e abrimos a nossa empresa de tecnologia e designe ecologicamente correto. Como éramos três os sócios, depois de alguma discussão, chegamos a um acordo e a batizamos de tri-ECOtd, ou Trieco, como chamamos no dia-a-dia. Rômulo gosta de chamá-la de “Treco”, só pra chatear o Renan. Nossos trabalhos mais freqüentes são as adaptações de projetos residenciais e comerciais para os moldes auto-sustentáveis. Mas também trabalhamos com projetos rurais e florestais. Depois de um ano, ainda estamos no mercado. Essa área tem crescido muito. E nosso futuro é promissor. Mas essas perspectivas não nos deixam mais tranqüilos. Muito menos o Renan.

_Bagunça, como se você fosse o mais organizado! – ele não tem quase nada seu nesse escritório. Eu, em compensação, tenho tanta coisa que me sinto em casa. Passo tanto tempo aqui quanto lá em casa.

_Onde você costuma colocá-lo?

_Dentro do armário dos projetos!

_E não está lá?

_Não, se estivesse eu não estaria procurando!-nesse instante Renan entrou no escritório, mas no calor da procura não percebi. Rômulo, em compensação, voltou a se enterrar no teclado do computador.

_Ah! Mas vocês vão ter que me dar uma explicação bem plausível pelo sumiço do meu blazer.

_Pois eu tenho uma boa para você! – disse Renan, ainda parado perto da porta.

Virei-me assustado para ele. Sua expressão de calma e serenidade é a que mais me assusta. Desde sempre prefiro que briguem comigo pelos meus erros do que os exponham para que eu mesmo perceba as tolices que tenho cometido.

_Imaginei que seu atraso fosse por preocupar-se vir de casa com tudo que você precisa para estar bonitão e arrogante no trabalho.

_Como? – o que ele quis dizer com isso.

_Sua imaturidade ainda é latente em seus atos Félix. Como você permanece tão tranqüilo à procura de um blazer com o projeto Hellen atrasado e uma reunião com o representante da Construminas daqui a pouco? Agora, imagina só, Iniciamos a reunião, e peço pro Rômulo pegar o projeto no armário dos projetos, ele abre a porta e cai um blazer cinza, levando consigo uma pilha de pastas e papéis, que forram o chão completando a decoração bagunçada que você, com seu toque particular, tem implementado no escritório.

_Então você viu meu blazer? Onde o colocou?

_Você prestou atenção no que eu disse? – agora sua face tranqüila desaparecera.

_Claro que sim, mas estou começando a me incomodar com o frio do condicionador.

Ele se dirigiu até minha mesa, pegou o controle do ar condicionado e o desligou. Seguiu até a janela, e como cena de filme, abriu as cortinas em um arranque só, deixando as enormes janelas emoldurarem aquela vista da pacata cidade de interior, com a torre da igreja sobressaindo às outras edificações, um céu azul sem nuvens e as montanhas de minas rodeando tudo isso. Por um instante parei para apreciar a vista, mas logo fui interrompido, já que Renan, a essa hora, não dava a mínima para a beleza do horizonte.

_Pronto, agora você não mais precisará do seu blazer!

_Isso não quer dizer que eu não precise do meu blazer! Onde ele está?

_No lugar onde sempre deveria ficar. O Armário do closet! – originalmente o prédio onde montamos o escritório era residencial.

_E por quê? Se ele fica do outro lado do escritório e o armário de projetos tem várias prateleiras vazias e é do lado da minha mesa?

_Félix, preciso do projeto executivo! – em vez de ajudar a amenizar a situação, Rômulo põe mais fogo na conversa.

_Chega atrasado, senta-se tranquilamente sob o ar frio do condicionador e se dá ao luxo de preocupar-se com um blazer cinza quando se tem uma renca de plantas, decisões e preparativos pela frente.

_Está no meu pen-drive, pega na minha bolsa – isso saiu como um grito abafado de raiva ao Rômulo, o grito que não tinha coragem de dar ao Renan, só que não o abafaria – alguma vez deixei de fazer meu trabalho nessa empresa? Alguma vez fui (de todo) irresponsável? – depois percebi que foi arriscado perguntar isso ao Renan, talvez não tivesse tanta categoria para retrucar se ele conseguisse responder a altura.

_Ótimo, agora sua eficiência é justificativa para suas falhas?

_Eu sempre termino antes do prazo, faço na última hora mas faço o que tenho que fazer!

_Onde você disse que está? – gritou Rômulo.

_No compartimento externo da bolsa, o com zíper!

_Não quer dizer que seja a melhor forma de fazer seu trabalho – voltou a importunar Renan – deixa todos na mão, atrasados com os projetos por sua causa...

_Eu faço o que tenho que fazer, e não venha me tratando como se você fosse o chefe porque...

_Eu dei o pontapé inicial nessa empresa, se a Trieco funciona como funciona...

_É porque todos damos duro aqui pra que isso aconteça!

_Achei o pen-drive! – gritou Rômulo tirando a cara de dentro da bolsa.

Nesse instante perdemos o rumo da conversa e olhamos para Rômulo.

_O que foi gente, podem continuar discutindo, eu tenho muito trabalho pela frente!

Renan voltou a olhar para mim, mas desviei o olhar para a janela, que, apesar das cortinas abertas, permanecia fechada. A pacata cidadezinha continuava emoldurada alheia à nossa discussão. Rômulo já estava sentado no seu computador e Renan decidiu desistir de dar uma de chefe comigo.

Voltei para trás da minha mesa, e sentei-me. Peguei o controle do ar condicionado e o liguei, dessa vez regulado para uma temperatura menos fria.

Odeio essas situações no serviço. O clima pesa, os olhos não se olham. O clima esfria e o trabalho não rende. Mas, em algumas horas tudo volta à normalidade. Pelo menos era o que parecia.

_O que é isso? – perguntou assustado Rômulo, aumentando o volume do som de seu computador.

Uma música, um rock, se é que isso é um rock começou a ecoar no escritório: “Agora que estou, tendo que me esconder, tua mãe quer me matar e teu pai me prender...”

_De onde você tirou isso? Perguntou Rômulo olhando pra mim como se eu pudesse explicar!

“...eu tenho aquele estilo que te deixa preocupado...”

_Porque você ta olhando pra mim?

_Por que isso vem do seu pen-drive!

_Como? – nessa hora uma voz voltou à minha cabeça: “Coloquei algumas das minhas músicas nele. Foi mal!”- Nice!

_Nice, quem é Nice? Ta saindo com alguém e não me disse? – Rômulo perguntou assustado, como se tudo isso fosse um furo de reportagem.

_Está explicado o atraso e toda essa frescuragem do blazer! – disse Renan voltando-se para mim com a face tranqüila e ameaçadora de novo.

_Não, Nice é a filha do vizinho!

_Você ta saindo com a filha do seu vizinho? Quantos anos ela tem?

“... não venha me dizer o que é melhor pra mim, a vida vai mostrando sempre foi assim...”

_Esse é meu mp3 player, não o pen-drive!

_Deve ser uma pirralha, provavelmente patricinha esnobe mal educada!

“...na escola fugir, na rua comer...”

_Não, ela é atleta, nos conhecemos durante uma caminhada...

_E você se fazendo de santinho, não conta pros amigos nada desses assuntos, á minerim mesmo!

_Isso sim é que é responsabilidade! Por acaso é alguma vegetariana, alpinista, “ecologicamente correta”? – Renan nunca faz piadinha que faça sentido, o que tem a ver alpinista com ecologicamente correta?

_Fica fazendo o tipo executivo, mas pegando as gatinhas do condomínio!

_Que isso Rômulo, respeito, eu não sou...

_O que você tem que eu não tenho, essas coisas nunca acontecem comigo!

“...eu não tenho classe, eu não sou ninguém, eu não tenho herança que te convem...”

_Gente vocês estão confundindo as coisas, não é bem isso! Eu tava caminhando outro dia, daí ela apareceu (com aquela coxa durinha) querendo companhia, eu não tive...

_Quantos anos ela tem? Deve ter idade pra ser sua filha! – Renan é o único que tem filhos, uma menina e um menino, encarnou o pai da Nice querendo me acusar de algo.

“...mas eu sou quem te faz tão bem!”

O interfone tocou.

_Sei lá, uns dezesseis!

_Gente, acho que o representante chegou! – disse Rômulo.

_Deixando de fazer seu trabalho pra se satisfazer com uma menor, isso dá cadeia sabia!

_Eu nem...

O interfone ligou de novo.

_Gente, o representante!

Renan foi até o interfone, abriu o portão sem nem perguntar quem era.

_Assuma sua responsabilidade, deixe seus problemas pessoais fora daqui! – Renan disse isso e virou dirigindo-se para sua sala.

_Eu disse no pen-drive, não no mp3!

_Foi, mal!

_Desliga isso! – disse enquanto ia até a porta.

_Mas preciso dos projetos!

Ele desligou o som, deu pra ouvir a porta do elevador abrindo e os passos no corredor. Não esperei que tocassem a campainha, abri a porta.

_Bom dia Marcos!

_Bom Dia José Félix!

_Entre, estávamos te esperando pra reunião!

Renan saiu da sua sala com um enorme sorriso no rosto como se nada tivesse acontecido.

_Félix, traga-o pra sala de reuniões! Bom dia Marcos! Aceita um café?

_Renan! Renan, sempre querendo agradar, um café seria bom!

_Félix, traga um café pra ele! – quando disse isso, o sorriso não estava mais estampado em sua cara e o sarcasmos voltava a reinar. Olhei para Rômulo, ele olhou pra mim e disse:

_Boa reunião! Trás um cafezinho pra mim também!

_Tá! – tudo o que eu queria e não ter conseguido chegar ao trabalho hoje! Talvez essa seria uma vantagem de se morar em cidades grandes, congestionamenots...

Fui até a cozinha, peguei os cafezinhos, passei no armário onde devia estar meu casaco e peguei os projetos que precisava-mos, passei no armário do closet, peguei meu casaco, olhei novamente para Rômulo.

_O pen-drive ta na bolsa, pega logo aquele treco e vai trabalhar. Hora do show!

Entrei sorridente na sala de reuniões.


(música: Paraíso Proibido - Strike)