27 de julho de 2010

Início do fim

Tudo tem um começo. O meu foi mais ou menos assim:

Filho único de família de renda média alta, cheguei ao meio familiar cercado de expectativa. Tudo eu. Tudo meu. Mimado? Não. Meus pais tiveram sabedoria suficiente para eu crescesse em humildade e conhecimento. Belo Horizonte, com seus parques e praças, foi cenário de inúmeros passeios e brincadeiras. Fazer xixi nas árvores, tropeçar no calçamento português, comer doces na feira aos domingos. Cenas de um filme só meu que guardo na memória. Pelo menos guardei só pra mim, até hoje.
A infância permite uma felicidade jamais imaginada. Nada de preocupações. Apenas o ceio familiar. Pais heróis que nos protegem nos momentos de fraqueza e nos abraça nos momentos de tristeza. Heróis que se tornaram os vilões da adolescência e reflexo da complexidade sentimental que sou hoje. Sempre fui muito parecido com meu pai. Ele era daquele tipo galante dos anos 70. Uma voz firme e segura. Uma barba nem densa nem rala. Um olhar com algumas olheiras que o deixavam naturalmente sério. Mas com um sorriso que o deixava naturalmente encantador. Contam-me que durante sua passagem pela escola era o conquistador. Tocava guitarra. Era o sonho das meninas. O chamavam de Elvis. Por conta disso, na vizinhança onde cresci, me chamavam Elvinho. Até minha mãe às vezes me chamava de Elvinho.
Nunca gostei das comparações. Queria ser eu. Acho que por isso criei meu modo meio alternativo de vestir, de ser. Mas a genética é traiçoeira. O nariz era dele, o sorriso era dele. Até as olheiras eram dele.
Lembro-me que quando fiz 10 anos, ele me contou que foi com essa idade que ele se apaixonou pela primeira vez. Foi seu primeiro beijo. O beijo perfeito. Contou da fila de meninas que andavam atrás dele depois disso. O primeiro da sua turma a dar um beijo na boca. Ele se gabava até então da fama que possuía. Disse que isso também aconteceria comigo. Mas nunca quis ser ele. Nunca quis seguir a mesma trilha.
Logo veio a primeira paixão. E fugi dela.
Fugi de muitas coisas durante minha vida. Motivos de arrependimentos.
Minha mãe é que se gaba de não ter dado bola para o garanhão da escola e ter sido a única que ele realmente quis. Aí sim teve que exercitar tudo o que aprenderam com os tantos relacionamentos superficiais para realmente conquistar minha mãe. E deu certo.
Meu pai morreu de câncer.
Prefiro ser direto. Enrolar com assuntos como esses me dão desespero. Eu tinha 12 anos quando ele descobriu a doença. E tive que enfrentar a barra sozinho. Minha mãe esqueceu que tinha vida própria. Esqueceu que tinha um filho. Os primeiros meses foram de desespero. A busca por repostas. Perguntas sobre o desconhecido. Discussões freqüentes, apesar do amor. Estavam desconcertados com as freqüentes notícias ruins que apareciam. Uma noite, levantei para ir ao banheiro, como fazia toda noite, e os ouvi na cozinha, conversando:
_ Nossa poupança não será suficiente.
_ Mas não podemos esperar que essa situação piore. – disse minha mãe quase aos gritos.
_ Mas e o José?
_ Nossa prioridade é sua saúde agora. Ele tem que entender. Ele precisa perceber que não somos mais uma família normal.
_ Mas ele precisa ser um garoto normal.
Nessa hora eu já tinha descido as escadas e estava encostado na parede perto da porta ouvindo melhor a conversa.
_ Como ele vai ser um garoto normal se não tiver um pai? Ele precisa de você!
_ Ele precisa ter vida! – meu pai, mesmo desesperado queria me proteger.
Subi assustado com a possibilidade de crescer sem pai. A idéia do super-herói abatido e desesperado pelo desconhecido desestrutura toda uma base familiar. Toda a imagem da família feliz começou a desmoronar.
Ele precisa ter vida. Isso ficou na minha cabeça. Nunca quis ter a vida dele. Sempre quis ter minha vida. E às vezes o achava meio decepcionado por me ver querendo ser alguém diferente. Por nunca ter aprendido a tocar guitarra. Por nunca ter falado de garotas com ele. Isso me deu coragem pra continuar minha rebeldia, apesar de sua doença.
Nos dois primeiros anos fizeram-se de fortes. Meu pai continuava a ir pro trabalho, minha mãe continuava em casa, mas agora sempre lendo livros médicos, assistindo programas sobre saúde. As coisas não se mantiveram as mesmas, acabaram-se os passeios nos fins de semana, mudamos nossos hábitos alimentares, nos afastamos. O medo foi priorizado. A família esquecida em função do indivíduo. Eu não me esqueci de mim. Eu preferi esquecer que existia uma doença. Que existia um problema. Queria ser criança, apesar da idade já avançando.
Depois desse período a situação foi agravando. Meu pai começou a fazer tratamentos mais intensos. Coquetéis de remédios que só o deixavam aparentemente mais dispostos, mas que, acredito eu, só o ajudava a se fazer parecer mais forte. Ele começou a perceber que seu tempo conosco seria curto. E voltamos a fazer coisas que já não fazíamos mais juntos. Os passeios pelas praças, os almoços de domingo. Ilusões que acalmaram minha mãe, alegraram o meu pai, mas não fizeram sentido para mim. Em que toda essa farsa de família normal, essa rebusca pelo papel do pai herói (e da mãe fortaleza) ajudariam na situação familiar em que nos encontrávamos, como isso me ajudaria a viver minha vida, a ter uma vida. Esse teatro só me trazia mais preocupações de quando é que a bomba estouraria. E isso não demorou a acontecer.
Quatro anos depois, os tratamentos tornaram-se demasiadamente caros para a situação financeira do meu pai. Cada vez mais fraco, teve que deixar o trabalho. E o dinheiro da poupança já tinha acabado. O sonho tinha acabado. A estabilidade tinha acabado. Meu modo de viver a situação só deixava minha mãe mais transtornada. Não podia me ver que começavam as reclamações:
_ Tá precisando cortar os cabelos – tinha uns dois meses que não cortava. Gastava de deixá-lo livre. Pelo menos os cabelos não precisavam estar engessados no clima familiar que ela tentava construir, em vão.
_ Gosto dele assim.
_ Deixa de ser desleixado!
_ Eu sou do jeito que eu quiser, deixa eu ser eu!
_ Como você pode falar assim comigo e manter esse olhar debochado? – ela já estava nervosa com outras coisas, e eu só provocava ainda mais.
_ Ah! Mãe, me deixa!
_ Não vou te deixar não. Não vou te abandonar nessa cama Cláudio! – disse isso aos gritos e de olhos fechados.
_ Eu não sou Cláudio mãe, eu não to na cama, eu sou o Félix. Lembra! Você ainda tem um filho. Não sei até quando, mas tem!
Bati a porta e saí da frente dela.