26 de março de 2010

CAPÍTULO 02 - "It's all right"

Passo a passo afasto-me do que chamo de lar, do aconchego do conhecido e previsto. O meu exterior entra em contato com o mundo exterior. O meu ser conversa com o ar que não me parece muito puro, apesar de eu morar em um condomínio não muito longe do centro. Isso é conseqüência de se morar no interior. Tudo fica muito perto. Isso facilita minhas idas e vindas do trabalho. Atualmente tenho feito esse percurso de bicicleta, tento dar o exemplo “ecologicamente correto”, isso faz bem pra minha imagem na empresa. Mas deixa pra eu falar nela mais tarde. Por onde andava? Ah! Sim, o ar puro do condomínio. Depois de alguns anos trabalhando e vivendo de aluguel, resolvi investir em um terreno desse condomínio. Pareceu-me promissor. O terreno é bem no meio da quadra, o que me deixa meio constrangido, já que depois de investir no terreno, pouco me restou para investir na casa. Como não tinha família, e planejava ter uma bem mais tarde, usei meu pouco talento na arquitetura pra projetar uma caixa. Alguns amigos no trabalho me ajudaram. Ficou bem minha cara: quadrado, pequeno, alto, transparente mas sombrio, forte e aparente, rústico mas com um toque de sofisticação, mal acabado propositalmente. Achei que seria difícil me acostumar quando vi o projeto sair do chão. Foi bem mais fácil do que eu imaginava. A vizinhança também ajudou. Ainda tem poucas casas por aqui. A minha direita, uma enorme casa branca onde mora um casal de meia idade muito envolvido com todo tipo de artes. Roberto e Clara. De vez em quando posso ouvir a vitrola tocando um jazz ainda no vinil. Clara, sempre no quintal dos fundos a pintar, esculpir ou a cuidar de seu jardim. A esquerda uma família do Carlos Borges, executivo que cismou em morar longe do trabalho. Quase não vejo ninguém na casa. As crianças às vezes saem com as babás. Sempre a observar-me e cochichar. Minha caixa lar não me dá muita privacidade às vezes. A lateral esquerda é quase toda em vidro, o que me deixa à mostra quando me esqueço de fechar as cortinas e troco de roupa. Não sei até que ponto posso considerar-me formoso. Ta bom, tenho um certo cuidado com meu corpo apesar de já estar chegando nos trinta. Um metro e oitenta de altura, academia duas vezes por semana (quando não tenho serviço extra), o que não me garante um “abdômen tanquinho”, mas nada que permita alguém chamar-me de gordo, é apenas uma gordurinha que esconde meu abdominal. Tenho a mania de caminhar sem camisa para pegar um sol, o que deixa as babás do vizinho mais alvoroçadas, assim como a adolescente da casa da esquina. Ainda não consegui conhecer sua família. Mas a julgar pelo seu comportamento... Às vezes me encontro com ela na caminhada. Ela sempre tenta me acompanhar e falar ao mesmo tempo. A capacidade que ela tem em me deixar sem graça é impressionante. Segunda passada ela estava sentada na mureta da calçada e quando passei me cumprimentou:

_ Oi!

Tirei o fone de um dos ouvidos e respondi.

_ Bom dia, Janete! – sempre finjo que não lembro o seu nome, pra ver se ela percebe que não presto atenção nela.

_ Janice. Nice, pode ser só Nice mesmo!

_ Ah! Sim, Nice.

_ Sempre na mesma hora né! Posso te fazer companhia?

_ Ah! Bem, sim, seria ótimo – nessa hora eu vesti a camisa, não acho que fez muita diferença.

_ Pode ficar a vontade, não precisa vestir a camisa por minha causa, eu também me sinto bem confortável sem roupas. Costumo dormir só com a parte de baixo do pijama. Você não prefere dormir sem camisa também? – tinha no rosto uma serenidade teatral que me constrangeu profundamente.

_ Minha casa não me permite certas regalias.

_ Já reparei, de vez em quando te vejo deitado quando faço uma visita pra Carol e pra Glória.

_ Carol e quem? – não conheço nenhum morador que tenha duas filhas que poderiam ser amigas da Janice, ainda mais que morasse perto da minha casa.

_ As babás da casa vizinha à sua, sabe? Da casa do Borges!

_ Ah! Sim.

A esta altura eu já estava dando a segunda volta à quadra em que morava, imaginei que ela não agüentaria mais que uma volta e logo desistiria, estar perto de casa talvez a ajudasse a desistir mas não era bem o que ela imaginava.

_ Há quanto tempo você caminha? – perguntei como se estivesse interessado.

_ Na verdade eu corro, faço atletismo no clube. Tenho um vigor e fôlego invejáveis pras garotas patricinhas e sedentárias da minha escola. Não quer dar uma corridinha?

Disse isto dando uma acelerada nas passadas. Ela estava com uma calça collant amarela que delimitava perfeitamente sua bunda. Aquelas coxas ainda novinhas, provavelmente sem estrias. Uma camisa mais soltinha que dava certa privacidade aos seios, mas instigava o mais experiente detetive a querer ver algo a mais. Como não prestar atenção. Como agir diante de tal cena. Meus pés continuaram na mesma velocidade. Ela tomou uma boa distância de mim até perceber que eu ainda estava anestesiado com a situação.

_ Você não vem tio?

Isso foi só pra provocar. Afinal das contas ela tem o que, uns dezesseis, dezessete anos. Qualquer cara do meu trabalho ficaria louco se estivesse no meu lugar. Qualquer cara normal. Acelerei mais do que podia pra alcançá-la. Mas tinha que manter a pose. Todo esse cuidado com o corpo, com o visual, cabelos sempre bem cortados, blazer sempre meio desbotados sobre um jeans de marca, alimentos orgânicos (vantagens de se morar em cidade pequena) e as caminhadas são parte do plano de não envelhecer parecendo velho. Ainda estou na adolescência quando se diz respeito ao amor. Aliás, à adolescência de alguns anos atrás, não a adolescência da Nice. Um corpo perfeito e provocante, uma cabeça aberta e cheia de informações pós-modernas, inclusive com relação à sexualidade.

Minha camisa começou a grudar no corpo. Minha mente fervia e meu corpo suava. Por causa disso percebi quão rápido batia meu coração. Uma pausa na corrida que deu pra sentir a dor na panturrilha. Dei uma olhada no relógio. Já estava atrasado. Na verdade, se não corresse pra casa iria me atrasar de verdade.

_ Nice, tenho que voltar! – estávamos a alguns quilômetros de casa.

_ Já Félix?

Félix. Assim que me chamam. Fui registrado com o nome de meu bisavô, José. Mas meu pai, não satisfeito acrescentou um Félix à minha graça. Tudo isto seguido pelos nomes das famílias do qual sou sucessor: Bragança e Prado. José Félix Bragança Prado. Queria poder ser reconhecido pelo nome mais comum, José. Mas preferem me chamar de Félix. Não acho ruim, até gosto.

_ Alguém tem que trabalhar né!

_ Tá! Te vejo outro dia, vou continuar correndo. Me empresta se mp3 player? Esqueci o meu!

_ Bem, tudo bem! – nem lembrava que em uma das minhas orelhar um pequeno dispositivo produzia algum som. O tirei tão rapidamente, que nem deu pra reconhecer a música que estava tocando na hora!

_ Adoro essa banda! – o que será que ela ouvia? O que será que ela pensaria de mim depois de ouvir minha lista de músicas para caminhar? Tudo isso era parte do plano dela para ter assunto pra ir fofocar com as babás do vizinho e me espionar ao sair do banho e trocar-me correndo por causa do atraso que aquela conversa causou.

O coração batia acelerado, só de lembrar daquela conversa, daquela corrida. Nice. Tanta inconseqüência e juventude investida em um cara como eu. Aliás, ela ainda está com meu mp3 player. Gosto de ir pedalando e ouvindo boa música pro trabalho, essa semana a música fez muita falta. Acho que vou passar na casa dela pra pegar de volta.

Tenho a impressão que emagreci. Tenho que encher o pinéu da bicicleta, ta ficando pesado pedalar assim! Mais um dia sem tempo de fazer a barba. Até gosto dela por fazer, mas ta passando dos limites. Onde está o blazer cinza? Será que deixei no escritório de novo!

_ Merda! – saiu um grito meio que sem querer!

Tênis, óculos, mochila, tudo aqui. Cadê o celular? Em cima das caixas de feira, ao lado da cama.

_ Merda! – esse foi por querer, esqueci de fechar as cortinas de novo! Pelo menos não tenho o costume de sair sem cuecas do banheiro.

Estou em cima da hora. Tranco a casa, Corrente da bicicleta. Beleza. Tudo certo. Nada de errado, tudo certo. Reclamar do que, sendo quem sou, morando onde moro. Somente uma longa pedalada até meu trabalho.

_ Ah! O mp3!

Paro em frente à porta, o cabelo não ta muito bom hoje! Alguém abre a porta, nem toquei a campainha ainda!

_ Nice, é o cara! – disse alguém uniformizado, um pouco mais novo que Nice.

_ Félix! O que faz aqui?

_ Vim buscar meu mp3 player, pode me devolver?

_ Claro! Tá no meu quarto, vamos lá pegar?

_ Estou com um pouco de pressa, e tem a bicicleta, vou esperar aqui mesmo! – ela não entende mesmo.

_ Tá, um momento!

Ela deixou a porta entreaberta. Estava meio bagunçada a casa. Uma decoração meio clássica mas muito colorida. Um cachorrinho veio latindo pro meu lado. Que raça era essa?

_ Micha! Quieta! – gritou ela das escadas.

O garoto uniformizado veio e levou a cachorrinha pra dentro. Meio sério o garoto!

_ Coloquei algumas das minhas músicas nele. Foi mal! É que você veio meio que sem avisar, não deu tempo de tirá-las.

_ Tudo bem! Pode deixar!

Joguei o mp3 na mochila. Estava tão preocupado com o horário que nem perdi tempo escolhendo uma música pra ouvir, ou mesmo ligando o aparelho.

Um comentário:

Luiza da Matta disse...

Não demora!!
Fiquei curiosa!
Hahahahahha